Superar o impasse em que nos encontramos hoje, (re)legitimando a política e as instituições políticas brasileiras, exigirá ousadia e criatividade, com a adoção de procedimentos que agreguem as novas tecnologias de comunicação e que incorporem a nova dinâmica da sociedade em rede. Procedimentos que estejam, portanto, em sintonia com o tempo presente e a sociedade contemporânea.
É preciso abrir espaço para a participação popular. Mas é preciso fazê-lo respeitando-se a dinâmica “autoral”, a horizontalidade e a ausência de hierarquia, características das mobilizações em rede. É preciso aceitar a diminuição do peso das instituições formais de representação política e social, abrindo-se espaço para a multiplicidade de interesses, de focos e de propostas.
É preciso agregar a internet, as redes sociais e as mensagens pelo celular como instrumentos de participação no processo de construção da reforma política, seja ela realizada por uma Constituinte Exclusiva, por um Plebiscito ou por um Referendo ou, ainda, por todos estes instrumentos conjugados.
A experiência da Islândia pode nos servir de exemplo. A despeito das expressivas diferenças existentes entre o Brasil e aquele país, seja em termos populacionais (a Islândia tem pouco mais de 300 mil habitantes, enquanto o Brasil tem mais de 190 milhões), seja em termos de qualidade de vida e equidade social (a Islândia ocupa a 14ª posição no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH – enquanto o Brasil ocupa a 84ª entre 185 países), a dinâmica utilizada para elaborar a nova Constituição islandesa poderia ser adaptada e encaminhada no Brasil.
Imersa em uma crise financeira que quase destruiu o país em 2008 e que levou ao descrédito da classe política (em 2010 um palhaço foi eleito prefeito de Reykjavit, sua capital), a Islândia realizou um processo constituinte por meio de consultas populares encaminhadas pela internet, utilizando um processo chamado de crowdsourcing (construção coletiva via internet), durante o ano de 2011. Foram eleitos, por SORTEIO, 950 cidadãos para integrar um Fórum Constituinte, que recebeu mais de 3.500 sugestões de pontos a serem incluídos na nova Constituição através de consulta popular.
Coube ao Fórum a sistematização das sugestões recebidas em um documento que estabeleceu linhas mestras para a nova Constituição, num total de 700 páginas, e lhe coube, ainda, a formulação de uma consulta popular para a aprovação das linhas mestras da nova Constituição. O passo seguinte foi a redação de um anteprojeto de Constituição, realizado em conjunto por um Conselho formado por 25 deputados eleitos diretamente (e ligados a partidos políticos) e pelos cidadãos-internautas, que discutiam e enviavam sugestões pela internet para cada rascunho de artigo em elaboração. Ao final deste processo, o anteprojeto de Constituição foi enviado ao Parlamento para discussão e submetido a um referendo popular para aprovação.
Estabeleceu-se, assim, uma nova dinâmica política que não excluiu os antigos políticos e os antigos partidos, mas que soube agregar novos “autores” políticos ao processo de decisão e representação pública. O mesmo processo de crowdsourcing foi utilizado pelo presidente dos EUA, Barak Obama, no início de seu primeiro mandato, para definição das prioridades de seu governo. Mais de 500 mil pessoas participaram do processo que foi, posteriormente, abandonado.
Respeitadas as diferenças já mencionadas entre os países, processo de natureza semelhante poderia ser encaminhado no Brasil, seja para a realização de uma Constituinte Exclusiva ou para a definição dos pontos a serem submetidos a um Plebiscito popular ou a um Referendo de validação. Poder-se-ia compor um Fórum integrado por membros eleitos por meio de SORTEIO dentre tantos quantos se inscrevessem livremente para esta função, independente de sua renda, escolaridade, local de moradia, gênero etc., bastando que ele fosse eleitor, maior de idade e “ficha limpa”.
Este Fórum criaria páginas nas redes sociais para receber sugestões e as receberia também através de mensagens de celulares, durante um período predeterminado e por meio de formulário específico para este fim. Depois, sistematizaria as sugestões recebidas, elencando os eixos centrais da reforma política que seriam, então, submetidos a um Plebiscito popular. Depois de aprovados, os eixos centrais poderiam ser desenvolvidos pela Comissão Especial Mista do Congresso Nacional, já existente hoje, a qual se encarregaria dos aspectos jurídicos e formais do anteprojeto, recebendo neste processo sugestões e críticas via internet e mensagens de celular, e o submeteria à aprovação da Câmara e do Senado Federal. As mudanças constitucionais que inevitavelmente precisariam ser realizadas seriam também submetidas à aprovação daquelas duas casas legislativas, respeitando-se a exigência constitucional de aprovação em dois turnos, mas reduzindo-se a exigência do quórum de 3/5, atualmente existente, para o de maioria simples. Para coroar o processo, o texto final da reforma política seria submetido a um Referendo popular, para aprovação (ou não).
Esta é uma fórmula que contemplaria todas as propostas atualmente colocadas em discussão, que garantiria a mais ampla e democrática participação popular e que agregaria ao processo político os instrumentos, a dinâmica e a lógica das sociedades contemporâneas. Qualquer reforma que desconsidere estes aspectos, explícitos hoje nas manifestações de rua em todo o país, nascerá ultrapassada e seus resultados correrão enorme risco de serem deslegitimados em curtíssimo espaço de tempo. É preciso (re)institucionalizar e (re)legitimar a política e a incorporação das novas formas de participação popular é o caminho possível.
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Três observações finais
1) Cabe lembrar que o SORTEIO é a forma mais democrática de se eleger agentes públicos, pois só ele garante a todo e a qualquer cidadão igual chance de ser eleito. Este sistema era amplamente utilizado na democracia grega para a escolha de dirigentes e de detentores de cargos públicos. Na democracia moderna e contemporânea, com o ingresso das grandes massas na vida política e a extensão do direito de voto e de representação a todos os segmentos sociais e a cidadãos com os mais variados níveis de renda e instrução, o voto por maioria foi consagrado o meio por excelência da representação política. Fato que não o torna, entretanto, mais democrático do que o sorteio.
O argumento de que o sorteio colocaria em postos de decisão cidadãos não preparados e com baixo nível cultural e de escolaridade não se sustenta. No atual Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas de cada Estado e nas Câmaras de cada município existem cidadãos de todos os níveis socioeconômicos e culturais, dos mais cultos aos mais ignorantes, e é bom que assim seja, pois devem representar a sociedade existente. A lógica que orienta o sistema eleitoral brasileiro desde a Constituição de 1945 e que foi reafirmada pela Constituição Cidadã de 1988 é a da representação por espelho, ou seja, da representação que possibilite a constituição de câmaras e assembleias legislativas que “espelhem” a composição da sociedade brasileira, com suas qualidades e deficiências.
2) Respeitando-se a proporcionalidade populacional entre a Islândia e o Brasil e considerando-se que cerca de 11% da população daquele país enviou sugestões ao seu Fórum Constituinte, a tendência seria de serem enviadas mais de 21 milhões de sugestões ao Fórum de Reforma Política brasileiro. Este volume de sugestões precisaria ser sistematizado por meio de um sistema computacional competente para processar tal quantidade de informações, eliminando tudo o que fosse improcedente (como, por exemplo, não se referir à temática proposta) e agregando as diversas sugestões em torno de eixos temáticos específicos.
Ressalte-se que já existem programas computacionais para a interpretação e análise de textos, que precisariam ser adaptados para processar o imenso volume de sugestões que seriam recebidas. Um obstáculo que, com certeza, seria superado em curto espaço de tempo, utilizando-se o processo de crowdsourcing, por exemplo.
3) Quanto a uma possível elitização da participação popular, na medida em que ela fosse realizada por meio das novas tecnologias eletrônicas, vale a pena destacar que, de acordo com levantamento do Ibope, 94 milhões de brasileiros tinham acesso à internet no segundo semestre de 2011, o que equivalia a 48% da população. Este percentual evidenciava um crescimento de 21 pontos percentuais frente ao levantamento realizado no ano anterior. Os segmentos sociais com menor renda têm menor acesso à internet, porém eles têm grande acesso a celulares e ao envio de mensagens por sua via, fato comprovado por pesquisa do Centro de Estudos da Tecnologia da Informação, que constatou que 82% dos domicílios brasileiros tinham telefone celular em 2009, percentual que provavelmente cresceu desde então.
Por ser esta uma proposta aberta à discussão e bastante inovadora em relação à realidade brasileira, ela precisa ser discutida e melhorada. Sugestões e críticas serão bem vindas e podem ser enviadas para a página https://www.facebook.com/btcesar ou pelo e-mail btcesar@gmail.com
Benedito Tadeu César é Cientista Político – Professor universitário e Coordenador do Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais – InPrO
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