Em tempos em que o debate político está mais para a coluna policial, e os holofotes da imprensa dão brilho aos novos heróis: desde o delegado da pequena cidade do interior ao todo poderoso STF, um bom alento é a edição de "Esquina Maldita", de Paulo César Teixeira, pela editora Libretos.
Teixeira remonta o cenário na juventude eletrizada pelo direito à revolução, do mundo ou do seu próprio nariz, fazia da boemia e da vida noturna um debate existencial. Os jovens estavam impregnados de sonhos e combatiam o silêncio e o doloroso cale-se promulgado pelas manchetes distorcidas daquele período. Lembro-me do "mar de lama" alardeado pelos lacerdistas contra o Getúlio e o que se viu foi o contrário durante os anos de chumbo que se sucederam. O mar de lama aumentou.
As discussões tinham um QG: era a lendária esquina maldita, a vibrante quadra entre a Osvaldo Aranha e a Sarmento Leite. Uma quadra de espaço aberto, democrático, despretensioso. Revoluções mentais e ações políticas espocavam nas mesas de bar por ali. Paulo César, que era frequentador da época e do local, coletou testemunhos dos ativistas e devolve à memória da cidade a herança das coisas produzidas por ali.
Júlio Conte, por exemplo, concretiza: "muito do que se produziu de arte e cultura na cidade, nasceu na Esquina Maldita". Vanderlei Falkenberg, numa clara demonstração de que tínhamos sonhos: "Acreditávamos que, com o fim da ditadura, todos seríamos felizes". E esta complexa simplicidade nos movia da universidade ou da militância sindical aos bares.
Falava-se de nós, falava-se de eu. Sim, havia uma individualidade, mas mesmo esta desembocava numa caminhada rumo a revolução de um coletivo. Foi o caso da Nega Lu que com sua bravura de negro, "bicha" e maluco, fez muita gente "sair do armário" e assumir sua plenitude, seus desejos e lutar pelo fim da homofobia. Lutamos ainda.
Se um jovem "hypster" lê o Esquina Maldita, vai entender que a modernidade está sempre começando e se esgotando, movimentos e contra movimentos nos forjam desde sempre. E vai entender que houve uma rede social off line poderosíssima, ácida e recheada de picardia. "Ficávamos de pé, sem parar de beber ou conversar, enquanto os policiais revistavam nossos bolsos", diz Eduardo San Martin. Era a resistência e a ironia. Uma tribo e um movimento social, contestatório, de luta contra a ditadura. Atualmente tem gente que fica na Cidade Baixa, fazendo exatamente a mesma coisa, mas é tudo mais "eu", menos tribal, menos cultural, mais no abismo vazio, do eu por mim mesmo. Meus feitos minha glória juvenil.
Claro que ali nem tudo era clareza, nem tudo eram luzes "para falar a verdade, não sei bem o que fazíamos quando estávamos loucos", diz, corajosamente, Wesley Coll. Ainda assim, pela esquina da Sarmento Leite com a Osvaldo Aranha, pelo Alaska, Marius, Copa 70 e Estudantil passaram figuras ilustres de nossa cidade. Uma geração se formou ali.
Se você hoje acha seu pai, sua mãe, seu tio e tia caretas; largue o tablet, compre um exemplar do Esquina Maldita e confere o que eles estavam fazendo numa época em que compartilhar não era ação do Facebook. Os revolucionários daquele tempo não mudaram na essência, eles mudaram o ritmo e, talvez, o estilo. Se você ainda quiser mudar algo que não parece certo, olha para sua casa, ali deve ter um revolucionário. Se você quiser começar uma transformação, me chama; se eu já não estiver lá, vou contigo!
ADELI SELL é professor, escritor e consultor
Nenhum comentário:
Postar um comentário