segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010
PT terá que se reposicionar diante do lulismo, afirma André Singer
PT terá que se reposicionar diante do lulismo, afirma André Singer
No momento em que completa 30 anos de sua fundação, o Partido dos Trabalhadores se vê diante de um novo fenômeno eleitoral, o lulismo, que pode obrigá-lo a ter que se reposicionar no cenário político brasileiro. Esta é a opinião do jornalista e cientista político André Singer (foto) pesquisador do sistema eleitoral brasileiro e ex-porta-voz do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em entrevista ao sítio BBC Brasil, 19-02-2010.
Eis a entrevista.
Como aconteceu esse realinhamento eleitoral em 2006 que deu origem a este fenômeno que o senhor chamou de lulismo?
A minha hipótese é que esse realinhamento foi resultado de políticas públicas que foram executadas no primeiro mandato do presidente Lula. Eu acredito que (ele é fruto de um) conjunto de políticas voltadas para a população de baixíssima que ficou (mais) conhecido pelo Bolsa Família. Na realidade, é um conjunto de medidas que envolvem o aumento do salário mínimo, o crédito consignado, além de uma série de políticas focalizadas, como, por exemplo, o (programa) Luz para Todos, a construção de cisternas no semi-árido nordestino, a regularização de terras quilombolas, só para citar algumas. É o conjunto dessas políticas que produziu uma mudança na qualidade de vida de um setor de muito baixa renda, que o economista Marcelo Néri, da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, costuma chamar de "o Real do Lula".
O lulismo é o resultado da combinação entre esse conjunto de políticas e a manutenção da estabilidade. Eu parto da hipótese que eu verifiquei em pesquisas que essa população (de baixíssima renda), que eu chamo de 'subproletariado' , é uma fração de classe que tem um aspecto conservador, que é o de temer o conflito político e, portanto, preferir ou aspirar que as mudanças que eles querem sejam feitas sem ameaça à ordem estabelecida. Então, o primeiro mandato do presidente Lula acabou por executar esse programa político.
Esse realinhamento pode levar a uma hegemonia do PT por algumas décadas?
No governo Fernando Henrique, o então ministro Sergio Motta falava de 20 anos de PSDB no poder. Eu acho que o PSDB pensava nisso e eu penso que, de alguma maneira, o PT também pensa nisso. Não sei o quanto é consciente, mas eu acho que um pouco esse pano de fundo está presente. Não sei se dá para chamar de hegemonia, porque este é um conceito mais amplo, diz respeito a uma capacidade de liderança intelectual e moral, que não é propriamente de um partido, mas é de uma classe que esse partido pode expressar.
Acho que os dois grandes partidos brasileiros, que são o PSDB e o PT, têm um pouco esse projeto, que é legítimo, não há nada que fira as normas democráticas, desde que os processos competitivos continuem. Eu diria que, sem dúvida, se a minha hipótese do realinhamento se confirmar, isso pode favorecer uma permanência do PT em um período mais longo, talvez próximo de 20 anos no poder. Mas tudo isso é especulativo e muito difícil de afirmar categoricamente, porque o comportamento eleitoral é tão imprevisível quanto a meteorologia.
Até que ponto o senhor acha que pode haver alguma consciência por parte do presidente Lula em relação a esse processo? Porque ele abandonou o discurso de esquerda clássico e fala muitas vezes diretamente com essa população.
Isto eu não saberia dizer, eu acho que o presidente Lula é dotado de uma intuição política poderosíssima, e é possível que essa intuição tenha levado ele a perceber, se é que a minha hipótese está correta. É possível que ele tenha intuído isto, mas eu não posso ir além de uma especulação.
Há uma identificação por parte deste eleitorado com a trajetória de vida de Lula? Não há um aspecto personalista no lulismo? Como a ministra Dilma Rousseff pode lidar com esse eleitorado, até porque ela tem um caráter mais técnico.
Não é exatamente que exista uma identificação com a trajetória de vida do presidente, mas o contrário. O fato de ele ter vivido pessoalmente a situação de vida que essa fração de classe vive, em minha opinião, fez diferença no governo. Há uma série de situações da vida cotidiana que a maioria dos políticos e dos analistas políticos que vêm da classe média não conhecem, e esta sensibilidade vem mais fácil para quem viveu essa situação.
Eu faço uma referência no artigo a esse aspecto, de que a biografia pessoal do presidente ajudou na conformação deste conjunto de políticas que teve esse resultado. Além disso, eu digo uma outra coisa, que é de que ele tem mais legitimidade para falar em nome desta fração de classe do que, por exemplo, o presidente Getúlio Vargas ou o presidente João Goulart, que eram latifundiários, que eram de uma classe social abastada.
Você diz que há aspectos personalistas nessa caracterização do lulismo. Eu acho que há elementos de carisma no lulismo. O carisma, na definição do (sociólogo alemão Max) Weber, é aquela situação em que você atribui a uma determinada pessoa características tão especiais que só essa pessoa vai fazer tal coisa, porque ela é dotada de características únicas, excepcionais.
Entendido o carisma desse modo, há um elemento de carisma no lulismo, sobretudo no Nordeste, mas ele não é o elemento predominante, a meu ver. O elemento predominante é mais fácil você ver no Sudeste, por exemplo. Se você pega uma cidade como São Paulo, o lulismo não é como no Nordeste. Ele não tem essa característica carismática, ele é mais a adesão a um conjunto de políticas públicas de maneira racional.
Então, se o lulismo for predominantemente, a adesão a um projeto político que é encarnado pelo presidente Lula neste momento, eu diria que não é tão difícil a transferência (de votos para Dilma), porque não é tanto a visão de que só ele pode executar esse projeto, mas sim, de que é um projeto coletivo.
Supondo que não tenha nenhuma interferência do governo nisso, mas o fato de ter sido feito um filme sobre a vida de Lula enquanto ele ainda é presidente não quer dizer que o carisma é mais forte? É um filme baseado na história de vida deste "mito".
A questão do filme é interessante, e eu poderia dizer que sim, de um certo ponto de vista, o fato de que tenha gerado um filme é um sinal de valorização da figura dele. Mas eu diria, ao mesmo tempo, que o fato de que o filme parece não ter tido o sucesso esperado, sobretudo no Sudeste, pode ser um sinal do que eu estou dizendo, de que é menos uma adesão carismática a ele e mais o reconhecimento de um determinado projeto.
Em uma entrevista na semana passada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso classificou a candidata Dilma como dogmática, a colocou como mais à esquerda do que o presidente Lula. O senhor acha que isto pode ser uma boa estratégia para a oposição, porque, pela hipótese do senhor, esse eleitorado que foi junto com o Lula em 2006 gosta da estabilidade. Colocar que a candidata Dilma é mais à esquerda que Lula, tem um passado de guerrilheira, não pode gerar uma aversão à candidata dentro deste eleitorado?
Pode, pode. Acho que, sem dúvida, a oposição deve estar mirando nisto. De fato, esse eleitorado é um eleitorado que, de acordo com o que eu percebi nas pesquisas, tem a questão da ordem como uma questão importante, ao mesmo tempo em que tem um forte apreço pela intervenção do Estado em favor da distribuição da renda. É aí onde a oposição fica sem discurso. A meu ver, por exemplo, não foi casual que o assunto das privatizações entrou em pauta no segundo turno de 2006, porque, embora não houvesse uma proposta de novas privatizações, a oposição ficou identificada com uma posição privatista.
O fato de o governador de São Paulo, José Serra – que até agora não assumiu sua candidatura – ter evitado qualquer tipo de confronto com o presidente Lula, qualquer crítica mais acentuada ao governo, mostra que ele deve seguir nesse sentido?
Ele não pode fazer diferente, ele está obrigado a isso. Nos estudos de comportamento eleitoral, a avaliação do governo é um item muito importante, no sentido de saber se queremos continuar ou queremos mudar (as políticas atuais). Como a população está avaliando muito positivamente este governo (Lula), o candidato da oposição não pode fazer outra coisa a não ser dizer que vai dar continuidade a essas políticas. Eu não tenho nenhuma dúvida de que, se o governador Serra for o candidato do PSDB, ele vai continuar com essa estratégia de não brigar com o governo.
E qual deve ser o peso do possível candidato Ciro Gomes (PSB) e da candidata Marina Silva (PV) nessa disputa?
Ciro Gomes já foi candidato por duas vezes, e ele tem, nessas candidaturas, uma trajetória bem coerente. Ele está procurando ocupar um espaço de centro-esquerda, que era o espaço original do PSDB e que o PSDB abandonou quando fez uma aliança à direita com o então PFL, hoje Democratas, e uma política mais conservadora. Nesse sentido, ele (Ciro Gomes) tem razão quando diz que disputa também com o candidato do PSDB, que ele pode tirar votos do candidato do PSDB.
Ao mesmo tempo, como o PT se deslocou em direção ao centro, o PT também passou a disputar esse espaço, a partir de 2002. Então, eu diria que ele (Ciro) tira votos de um e de outro. Já a candidatura Marina é um pouco diferente. Ela é uma candidatura nova, que tem, a meu ver, um potencial de atrair setores de classe média, sobretudo universitários, que têm muita simpatia pela causa ambientalista.
Ela, de fato, será a primeira candidatura que os cientistas políticos chamam de pós-materialista, porque ela vai tentar sair um pouco da agenda principal, que é a questão da distribuição da renda. Como eu acho que o Brasil ainda é um país em que a questão da distribuição de renda está muito presente, eu não acredito que ela tenha possibilidade de passar muito de 10% dos votos. Mas esses 10% seriam já uma votação muito significativa e podem ser o fiel da balança.
O senhor aponta uma desconexão entre o voto no Lula e o voto no PT, que continuaria forte entre a classe média, o operariado. Qual será o futuro do PT? Ele terá que se tornar um partido lulista? Como será o PT pós-Lula?
Eu acho que isso é uma das grandes interrogações do momento. No artigo, eu cito um trabalho da professora Wendy Hunter e do professor Timothy Power. Eles verificaram que, na eleição de 2006, essa penetração do lulismo no interior do país, nas cidades menores, no eleitorado de renda mais baixa, não se deu em relação ao PT.
De 2006 para cá, eu acho que pode estar acontecendo um processo de confluência entre o lulismo e o petismo. Eu vejo indícios possíveis disso quando a gente a analisa a eleição municipal de 2008, quando o PT não foi bem nas capitais, que são colégios eleitorais influenciados pela classe média, mas foi bem no entorno das capitais, que são as regiões metropolitanas onde há uma população de baixa renda mais predominante.
Isto pode ser um sinal de que o eleitorado lulista está começando a convergir para o PT, começando a votar em candidatos a prefeito, a deputado, a vereador, a governador do PT. Se isso acontecer, se isso estiver acontecendo, será um processo lento, e é uma das possibilidades de institucionalizaçã o do lulismo, que ele seja canalizado para o PT. Se isso acontecer, é provável que a gente assista a um processo de transformação do PT.
O PT é um partido com uma origem ideológica muito marcada como um partido de esquerda e que manteve até hoje um ethos de esquerda bastante nítido, em que pese o fato de ele ter sofrido transformações. O partido se institucionalizou muito, o PT deixou de ser um partido com forte influência sindical e passou a ser um partido com forte influência parlamentar, o partido não tem mais a força da militância que tinha antes, está mais profissionalizado.
Houve também algumas mudanças programáticas, mas se você olhar para o conjunto, o PT tem um ethos de partido de esquerda. e o lulismo realmente for para o PT, é provável que haja alguma mudança, porque o lulismo não tem essa característica de esquerda que o PT tem. Ele tem aspectos de esquerda na aspiração de intervenção do Estado para redistribuição de renda, mas tem aspectos que não são de esquerda. Então é possível que o PT venha a ser uma resultante do encontro entre essas duas forças.
O lulismo pode matar o petismo?
É muito difícil fazer uma afirmação categórica. Como eu acho que o PT construiu uma trajetória sólida, é mais provável que haja uma resultante que seja a fusão das duas coisas do que o claro predomínio de uma delas.
O senhor diz que o fato de Lula ter mantido a estabilidade tirou dos partidos de centro a plataforma que usavam para atingir o eleitorado mais pobre. Como ficam o PSDB e o DEM?
Eu acho que eles estão em uma situação muito difícil momentaneamente, porque perderam uma parte de seu discurso, que era o discurso do medo. Tentaram substituir pelo discurso da ética, mas esse discurso da ética não tem a mesma eficiência eleitoral, porque esse setor do eleitorado (mais pobre) prioriza as questões relativas às condições vida, que são pra eles fundamentais. Por hora, mantidas as condições atuais, eles estão condenados a fazer uma mágica, que é provar para o eleitorado que a oposição é melhor para dar continuidade aos programas do governo do que o próprio governo.
E a esquerda, dentro do PT e fora do PT, como fica diante desse fenômeno?
A esquerda está diante de um desafio, assim com a direita e o centro. O surgimento de uma força política nova, com características ideológicas diferentes, coloca para a esquerda a necessidade de se reposicionar. Diante de uma liderança, de um movimento, como é lulismo, que tem características populares muito arraigadas, a esquerda se vê diante da necessidade de adotar uma posição que ao mesmo tempo reconheça essas características populares, que são importantes, mas reafirme o seu ponto de vista ideológico, que é diferente do lulismo.
Nenhum partido no Brasil que queira ter eficiência eleitoral pode prescindir desse eleitorado (de baixa renda), porque até a eleição de 2006, eu estimo, ele poderia ser metade de todo eleitorado. Eu quero fazer uma ressalva que é a seguinte: as mesmas políticas que levaram ao surgimento do lulismo estão também fazendo com que uma parte deste eleitorado mude de condição, se transformando nessa nova Classe C.
Como deve se comportar essa nova Classe C?
Esta é uma das perguntas mais interessantes deste momento, para a qual eu não tenho resposta, porque as pesquisas ainda não iluminaram este aspecto. A gente pode pensar duas coisas contraditórias: ou que, ao mudarem de condição de vida, eles passem a votar diferente, até para se diferenciarem da condição de vida anterior; ou que, em uma perspectiva de reconhecimento de que a mudança teve relação com a implementação de certas políticas, eles vão votar pelo prosseguimento dessas mesmas políticas. As duas coisas são possíveis.
Se a ministra Dilma perder a eleição, isto desestabilizaria o PT, o lulismo?
Eu diria que, se a ministra perder as eleições, provavelmente o lulismo terá se comprovado uma hipótese menos importante do que eu estou imaginando. Para o PT, vai representar uma derrota importante, como foi para o PSDB em 2002 e 2006, mas, até onde eu consigo enxergar, o partido me parece consolidado o suficiente para poder permanecer na oposição e se reapresentar em 2014, 2018.
Talvez com o próprio Lula?
Possivelmente com o próprio presidente Lula.
O novo presidente do PT, José Eduardo Dutra, afirma que a campanha de Dilma será pragmática e que o PT hoje é um partido pragmático. O Brasil perdeu a esquerda ideológica do PT dos anos 1980?
Esse é um aspecto importante. Eu acho que o PT, menos do ponto de vista programático e mais do ponto de vista de sua política de alianças, transitou para uma postura pragmática que eu acho excessiva, e isso não só em função do próprio PT, mas em função do que o PT significa para o sistema partidário brasileiro. Eu acho que o PT, ao privilegiar a aliança com o PMDB, se descaracteriza como partido essencialmente programático, porque o PMDB tem essa característica, é um partido que não tem um programa claro perante a sociedade brasileira.
Certamente tem um programa registrado, mas não tem um programa que o eleitorado consiga discernir, e é isso que permite ao PMDB apoiar o segundo mandato do governo Fernando Henrique, que foi privatizante, e o segundo mandato do presidente Lula, que teve características bem diferentes, se quisermos usar palavras mais fortes, foi estatizante. O PMDB, como um partido sem programa e sendo o ponto mais importante da composição que o PT está construindo, ajuda a descaracterizar o PT enquanto partido programático. Esse aspecto é hoje o principal problema do sistema político partidário brasileiro, ele está ficando excessivamente pragmático.
O PT pode então estar seguindo o mesmo caminho do PSDB quando se aliou com o então PFL?
Em um certo sentido sim, se você desconsiderar as questões exclusivamente pragmáticas. Do ponto de vista pragmático, a escolha do PMDB é totalmente compreensível. O PMDB tem um tempo longo na televisão e tem uma estrutura nacional importante, embora seja muito heterogêneo.
Então, a escolha do PMDB é uma escolha pragmaticamente compreensível, mas eu diria que, do ponto de vista dos interesses da sociedade, e não exclusivamente dos interesses partidários, o PT está cometendo um erro parecido com aquele que o PSDB cometeu ao fazer uma aliança com o PFL, que, de um certo ponto de vista, descaracterizou definitivamente o PSDB. (O PSDB) continua sendo um partido importante, mas não tem mais aquelas características ideológicas que tinha de início.
Existe espaço para um partido de esquerda programática no mundo de hoje?
No mundo inteiro, nós estamos vivendo um processo de americanização da política. Esta americanização, inclusive na Europa, é um processo de pragmatização do comportamento partidário. Nesse sentido, eu diria que a tendência é na direção contrária. No entanto, isto está levando a um esvaziamento da democracia, o que é um processo perigoso. À medida que você tem partidos que não são programáticos, que não são ideológicos, a sociedade passa a considerar que a política é um assunto dos políticos, que é um assunto de interesse dos políticos para si mesmos, o que é um grande problema. Isto, por sua vez, produz um distanciamento do eleitorado com relação ao processo político, e esse distanciamento vai reforçando o descolamento que existe entre a esfera política e a esfera social, com o agravamento de uma série de problemas que existem em todos os países democráticos.
Eu diria que, se de um lado existe pouco espaço para partidos ideológicos, ao mesmo tempo eles nunca foram tão necessários, porque aparentemente não há outra maneira de você revitalizar a política democrática, que precisa ser revitalizada quase que desesperadamente.
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