Ficha limpa na gaveta, suja nas eleições
Dom Tomás Balduino1 (FSP, 14/02/2010, p. A3.)
Um milhão e quinhentas mil assinaturas entregues a Michel
Temer (PMDB-SP), presidente da Câmara dos Deputados, em 29 de setembro de 2009,
foram o fruto de uma bela e esperançosa campanha nacional visando apresentar um
projeto de lei exigindo ficha limpa dos candidatos a cargos eleitorais.
Um evento histórico da maior importância para a democracia
brasileira.
Houve destacada participação do Movimento de Combate à Corrupção
Eleitoral (MCCE), da presidência da CNBB, dom Geraldo Lyrio e dom Dimas
Barbosa, insistindo, na coletiva do dia 11 de dezembro, na agilidade da
aprovação do projeto para barrar a corrupção na política.
A magnitude do acontecido mereceria uma comemoração das mais
festivas. O que se viu, entretanto, depois da entrega oficial, foi um Congresso
silencioso, reticente, triste…
O deputado Michel Temer, desde o primeiro momento, se
entrincheirou no adiamento da pauta do projeto para fevereiro de 2010, alegando
agenda cheia, recesso parlamentar e outras prioridades. Dizia estar dialogando
com os líderes para que esse projeto de lei não corresse o risco de “não ser
aprovado”.
Passado um mês de sua entrega, não havia relator designado e
entrou no inexorável ritmo do passo lento daquela pesada máquina burocrática.
Uma decepção! A ficha limpa foi para a gaveta de Michel Temer.
Quanto aos demais deputados, não se tem registro de
posicionamento público, a não ser o do deputado José Genoino (PT-SP), que subiu
à tribuna, em 4 de novembro, para criticá-lo.
Para Genoino, a proposta é “inconstitucional” e
“autoritária”. É preciso recordar, porém, que ele é réu no processo do mensalão
que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
Seu discurso recebeu apoio de quatro deputados, entre eles o
de Geraldo Pudim (PR-RJ), que já foi alvo de questionamentos na Justiça, e
Ernandes Amorim (PTB-RO), que admitiu responder a processos e inquéritos judiciais.
Genoino se posiciona pela liberação das fichas sujas nas
eleições, pela manutenção da impunidade dos que acorrem à campanha eleitoral em
busca de um cargo público, para lhes garantir fórum especial e blindá-los
contra os instrumentos comuns e normais da Justiça.
Vários políticos se precipitam em busca da eleição logo após
terem cometido crimes, até de homicídio.
Conseguem multiplicar recursos financeiros e,
consequentemente, o número suficiente de eleitores para elegê-los.
Agora, na semana passada, depois de quatro meses de espera
na Câmara, os líderes partidários decidiram criar uma comissão para,
simplesmente, modificar o texto da proposta porque, segundo eles, haveria
dificuldades de aprovar o veto à candidatura de políticos com condenação em
primeira instância na Justiça.
A gente se pergunta: a quem, afinal, esse Congresso
representa? Qual a relação que esses nobres deputados têm com a sociedade civil
organizada para que uma mobilização popular séria, prevista na Constituição,
como a que ofereceu à nação um número tão expressivo de assinaturas, acabe, na
Câmara, num leviano joguete de interesses escusos de senhores votando em causa
própria?
Está de parabéns dom Dimas, secretário-geral da CNBB, que
mais uma vez se posicionou com o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral:
“Não se tolera mais adiamento do projeto. O movimento topa dialogar com quem de
direito no Congresso. Não aceita, porém, alterações redacionais que venham
desfigurar os princípios que norteiam a iniciativa”.
A ficha limpa é um passo de suma importância para salvar a
democracia e para garantir a credibilidade do processo eleitoral. Mas não é
tudo, pois uma análise mais profunda do nosso processo eleitoral nos leva à
melancólica conclusão de que ele é estruturalmente corrupto.
Vou citar, para concluir, uma autoridade no assunto, João
Heliofar de Jesus Villar: “Como procurador regional eleitoral no Rio Grande do
Sul, tive a oportunidade de atuar em quatro eleições e refletir demoradamente
sobre essa loucura que é o processo das eleições no Brasil. Quem trabalha na
fiscalização dos pleitos sabe que o sistema está desenhado para não funcionar.
Não se trata de fiscalização ineficiente e sim de fiscalização impossível. (…)
Há um consenso silencioso na classe política de que o caixa dois é uma
necessidade inafastável.” (“Corrupção: o ovo da serpente”,
“Tendências/Debates”, 4/1).
Antes de qualquer reforma política entregue a esses mesmos
senhores, emerge, pois, a nossa inarredável responsabilidade como sociedade
civil organizada.
1 Dom Tomás Balduino, 87, mestre em teologia e pós-graduado
em antropologia e linguística, é bispo emérito da cidade de Goiás e conselheiro
permanente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
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