Nós e nossa memória, por Ivan Izquierdo *
O filósofo Norberto Bobbio disse uma vez que “somos o que recordamos”. Somos aquilo de que guardamos memória; não somos mais aquilo que esquecemos, nem podemos ser o que ainda não conhecemos. O que já desapareceu de nosso cérebro, ou aquilo que nunca esteve nele, não é nosso. Por isso é tão desolador perder memórias, e nos preocupa tanto: porque perdemos parte do que nos pertence, parte de nós.
Não é bom, porém, lembrar de tudo, todo o tempo. Mas uma coisa é não lembrar algo; outra é perdê-lo. Não gostamos de lembrar situações ruins, mas não podemos nos dar ao luxo de apagá-las completamente. Não é bom lembrar todo o tempo da vez que um ônibus quase nos atropela; mas é importante ter essa memória presente cada vez que devemos atravessar a rua, para olhar para os lados, prestar atenção. A memória de um perigo nos serve para evitar outros, ou para não repetir o mesmo. Lembrar das histórias sobre tigres nos ajuda a não botar os dedos na gaiola.
Algumas memórias, porém, devemos perder para poder funcionar na vida diária. Um personagem de Borges, Funes o Memorioso, era capaz de lembrar um dia inteiro de sua vida, mas para isso precisava outro dia inteiro de sua vida, até o último milissegundo. Esse conto é usado habitualmente como demonstração de que a memória perfeita não existe. E ainda bem que é assim, porque seria prejudicial para nós lembrar de uma namorada antiga quando estamos prestes a beijar a atual.
Existe um equilíbrio entre o que é preciso guardar ou esquecer. O cérebro sabe disso; nos faz lembrar o que realmente é importante, e nos permite descartar o que não é necessário. Por meio de pesquisas, verificamos que essa função melhora depois dos 40, ou seja, aproximadamente na metade da nossa expectativa de vida. A função de “descarte” mede-se pelo esquecimento de informações tidas como triviais: dados sobre filmes vistos na TV uma ou mais semanas atrás. Nossa memória madura descarta o trivial, mas lembra do importante.
Quando o cérebro começa a esquecer do importante, seja em qual idade for, é bom consultar um neurologista. Pode estar acontecendo algum transtorno da memória e, se for o caso, será útil tratá-lo. A distinção entre o esquecimento corriqueiro, benigno (onde deixei as chaves e onde estacionei o carro?), e a amnésia que requer tratamento (esse aí é meu filho?), quando não é óbvia, deve ser deixada nas mãos de um profissional.
* Pesquisador do Centro de Memória, no Instituto do Cérebro da PUCRS
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