segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A tradição se reinventa no Mercado Público da Capital

Mix variado, operações de redes ao lado de marcas tradicionais. Qualificação das operações, através de cursos para os trabalhadores. Não, não estamos falando de um shopping, mas de um novo Mercado Público que se redesenha no Centro de Porto Alegre
Karen Viscardi
MARCELO G. RIBEIRO/JC
Mais de mil trabalhadores atuam nas 108 bancas pelas quais circulam 125 mil pessoas diariamente
Mais de mil trabalhadores atuam nas 108 bancas pelas quais circulam 125 mil pessoas diariamente
Quem circula pelos corredores do Mercado Público Central de Porto Alegre percebe que o velho mercado já não é mais o mesmo. Está ainda melhor. O atendimento personalizado vem sendo qualificado, as instalações estão revitalizadas, novas bancas se instalam e até o entorno recebeu melhorias. Tudo isso sem deixar que o espaço, encravado no Centro da Capital, perca suas raízes e identidade.
As mudanças começaram com algumas bancas, que foram incrementando a oferta de produtos, mudando o layout das lojas e obtendo resultados positivos em vendas. Uns inspiraram outros e agora o movimento ganha força. Através da Associação do Comércio do Mercado Público Central (Ascomepc), os trabalhadores recebem treinamentos nas áreas de gestão de pessoas, atendimento ao cliente e segurança alimentar. A Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic), administradora do local, também trabalha para ampliar o mix e nas obras de melhorias. 
“Estamos indo na direção dos mercados internacionais, um espaço que oferece especialidades, comidas frescas e de qualidade. Antes, o trabalho era direcionado ao público do Centro, mas agora os lojistas se deram conta de oferecer produtos de maior valor agregado. Temos especiarias que só se encontram aqui”, observa Clóvis Althaus Júnior, diretor da associação.
Essas mudanças vêm sem atropelos. “Hoje o Mercado tem projeto”, afirma Paulo Henrique Göttert, também diretor da Ascomepc. A proposta da entidade é fomentar e promover o comércio e mostrar para a população as melhorias que estão sendo feitas. Por exemplo, as bancas estão se especializando cada vez mais, trabalhando no detalhe e treinando suas equipes.
Formada em grande parte por pessoas jovens, herdeiros dos feirantes mais antigos, a diretoria atual tem como trunfo representar diferentes segmentos que compõem o mix do mercado. Essa pluralidade contribui para a elaboração de um projeto mais amplo, garante Göttert. E, em função da sinergia, contempla melhorias de uma forma mais abrangente.
Exemplo desse esforço de capacitação, 80% dos permissionários aderiram às ações do Programa Alimentos Seguros (PAS), desenvolvido pelo Sebrae, Senai, Senac, Sesi e Sesc em parceria com a Ascomepc. Neste processo, o próprio Mercado está se adequando. As primeiras bancas a conquistarem certificação, a Banca do Holandês e o Empório 38, tiveram poucas alterações na rotina para se adequarem. “O trabalho estava no rumo certo”, destaca o proprietário das duas operações, Sérgio Lourenço Araújo Rosa.
Para ele, a certificação comprova as boas práticas internas e isso é uma garantia maior para o consumidor. Entre os processos verificados a partir do PAS, está o controle de temperatura dos produtos antes mesmo de os caminhões dos fornecedores descarregarem. Até hoje, nenhum fornecedor foi reprovado em função disso, indicando que a cadeia produtiva está alinhada na questão da qualidade.
Outro bom exemplo vem da administração do Costelão do Mercado. O açougue, em constante melhoria, exibe certificações inéditas entre as bancas. É o primeiro açougue do mercado com certificação do Serviço de Inspeção Municipal.
Os esforços dos feirantes trazem resultados: o fluxo de pessoas aumentou 20% no mercado. E o perfil do público vem mudando sensivelmente. Gourmets e apaixonados por gastronomia são facilmente encontrados buscando ingredientes frescos ou mesmo exóticos para suas receitas. Segundo o proprietário do restaurante Gambrinus, João Melo, aumentou o número de turistas e pessoas mais jovens, o que Melo comemora, já que considera que atrair esse perfil de público é justamente o desafio do mercado.

História a favor do futuro

MARCO QUINTANA/JC
O Gambrinus sabe usar a força da sua história ao mesmo tempo em que vislumbra o futuro. Primeiro restaurante da cidade, o Gambrinus é apenas 20 anos mais jovem do que o prédio que o cerca. O slogan “o tradicional mais antigo” faz jus ao restaurante aberto em 1889 e que passou de geração em geração até chegar a João Melo, atual administrador. O jovem, de 32 anos, circula desde os 12 anos entre as mesas e a cozinha e é responsável por mudanças na gestão e a adoção do Programa de Alimentação Segura (PAS), através do Sebrae e Senai.
Também o cardápio especializado em frutos do mar e culinária regional, apresentado hoje em português e inglês, vai ganhar neste ano versão em espanhol e braile. “Estamos nos preparando para a Copa do Mundo”, explica Melo, destacando que muitos turistas estrangeiros devem visitar o velho mercado. “Até porque o mercado é a vida de Porto Alegre, o coração da cidade. Aqui estão representadas a cultura e a tradição do povo. Temos a diversidade étnica das famílias gaúchas, que descendem de italianos, portugueses, japoneses...”, observa Melo.
Sabendo aproveitar o antigo e o novo, o restaurante mantém as anotações dos pedidos em papel, assim como busca manter seus garçons, velhos conhecidos dos habitues do restaurante. É o caso de Sérgio Luiz D’Ávila Pereira, gerente que faz as vezes de garçom no estabelecimento. Há 33 anos no mercado e há 14 anos no Gambrinus, Pereira é um apaixonado pelas paredes que o cercam. “O mercado é a minha maior experiência de vida e profissional e abriu as portas para eu fazer uma faculdade”, conta Pereira, que está no último semestre da faculdade de Administração. Qualificação é uma palavra que faz parte da vida de Pereira, além da universidade é um autodidata em inglês, que aprendeu através da internet, e é uma das apostas de Melo para conquistar os gringos durante a Copa.
Não apenas o Gambrinus, mas os outros licenciados e a prefeitura têm urgência em remodelar e adequar as operações para a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Afinal, é preciso estar alinhado para receber turistas de diversas partes do mundo. Para isso, não é só a estrutura física que precisa estar em dia, a equipe de atendimento também precisará ser treinada.

Uma novidade leva à outra

Ao lado dos tradicionais restaurante Gambrinus, bar Naval e padaria Pão de Açúcar, marcas novas como Temakeria Japesca e o Sushi Senninha consolidam o Mercado Público como um centro de referência de gastronomia na cidade. Mas o mercado vai além. Uma operação de restaurante de parrilla já está confirmada e um novo café, assim como uma unidade da Georges Pastel e da multinacional Subway, especializada em sanduíches.
“Estamos tentando resgatar uma visão mais comercial do mercado”, explica o titular da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic), Valter Nagelstein, que, entre outras atribuições, autoriza a cessão dos espaços das bancas. Segundo o secretário, a ideia é ampliar a oferta com um restaurante com bandeira especializada em frutos do mar.
O acerto no tipo de operação é comprovado pela disputa acirrada dos clientes por uma mesa na Temakeria Japespa. A banca Japesca, que oferece cortes de peixes especiais para sashimi, resolveu ir além do ingrediente. Atenta à febre de comida japonesa entre os porto-alegrenses, abriu em setembro de 2010 a Temakeria Japesca. “A Japesca é uma assinatura, uma certificação da qualidade da Temakeria”, explica o sócio Paulo Henrique Göttert.
Outra operação que faz sucesso é o Café do Mercado. Começou com uma loja, passou para duas e agora ocupa um novo espaço, onde instalou um torrefador de café. Era a única loja não ocupada desde a reforma que terminou em 1997. A ideia do proprietário Clóvis Althaus Júnior é trabalhar com cafés excepcionais, ou seja, os melhores grãos produzidos pelos melhores cafeicultores do Brasil. Quem for ao Café do Mercado pode escolher o tipo e a forma de preparo da bebida: passado ou italiano francês.

Centro de especiarias e especialidades

MARCO QUINTANA/JC
Quem nunca tomou e preparou um chimarrão tem no Mercado Público a chance de aprender. Mais do que isso, de aprender os tipos de erva-mate e de poder misturar diferentes folhas e marcas, já que uma das características das bancas do mercado é justamente a venda a granel. Foi o que a professora Karen Villanova fez neste verão.
Marinheira de primeira viagem, ouviu com atenção as dicas que o funcionário da banca lhe fornecia e saiu prometendo retornar, satisfeita por levar para casa um produto que não seria encontrado no supermercado.
“A possibilidade de comprar a granel é um dos diferenciais do mercado”, atesta Paulo Henrique Göttert, diretor da Ascomepc. Ele diz que o atendimento personalizado, a possibilidade de conversar com o proprietário da banca, pedir dicas, receitas são impensáveis em uma rede de autosserviço.

Espaço é disputado para realização de feiras e exposições

A área de eventos, localizada no chamado quadrante quatro do térreo, é hoje um espaço disputado para a realização de mostras periódicas. Tanto que a Feira de Antiguidades, que funcionava em um shopping da Capital desde 2009 é realizada no bom e velho Mercado Público. Agora, é a vez da Feira de Material Escolar, em sua 21ª edição, que tem como compromisso vender seus produtos com os preços mais acessíveis do mercado. Promovido pela Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic), o evento vai funcionar até 5 de março. Do lado de fora, o evento de maior destaque é a Feira do Peixe de Porto Alegre. Em sua 231ª edição, a feira do largo Glênio Peres é tão tradicional que começou bem antes da edificação do prédio do próprio Mercado.
O largo também merece atenção. Em dezembro de 2010, foi entregue para a cidade a primeira etapa de revitalização da área. Adotado pela Cola-Cola, através da Vonpar Bebidas, o Glênio Peres recebeu melhorias. Quem circula por ali nota a diferença no cenário: agora há deques e móveis em madeira, iluminação diferenciada, a pavimentação em basalto e pedras portuguesas foi reformada e agora traz seu desenho original. Para maior segurança e comodidade, foram instaladas câmeras de videomonitoramento e rede wireless. Na avenida Borges de Medeiros, os canteiros ficaram maiores, enfeitados por palmeiras.
Também o Chalé da Praça XV, localizado do outro lado do largo, está de cara nova. Há menos de um mês, foram inauguradas as novas instalações do espaço, construído em 1880 e hoje patrimônio histórico de Porto Alegre.
A Praça Parobé, que também serve de entrada para o Mercado, também deve ser remodelada. O secretário da Smic, Valter Nagelstein, adianta que esse é o próximo passo do projeto de revitalização do Centro e já está em negociações com empresas privadas para participarem da ação. A proposta é de um novo layout para o horto, com troca de bancas dos floristas e fruteiras ali instaladas, o que ainda depende de alguns ajustes.
A ampliação do Chalé faz parte da primeira etapa do programa de reurbanização da Praça XV, largo Glênio Peres e das ruas Marechal Floriano e José Montaury pelo Projeto Viva o Centro, que teve início com a transferência do comércio informal da Marechal Floriano e Montaury para o Camelódromo.

Melhorias em todas as frentes

Antiga reivindicação, a reforma dos banheiros não será uma simples substituição de peças avariadas ou troca de piso. Os espaços estão sendo completamente repaginados e terão piso em granito. A previsão de entrega é para março.
Alguns problemas históricos começam a ser resolvidos. Pode parecer inverossímil, mas há dois meses não havia lixeiras nos corredores do mercado. Agora elas estão ali. Recentemente, os permissionários realizaram a reforma nas câmaras frias e foi retomada a instalação da sala de resíduos. O projeto está em implantação e possibilitará o tratamento de resíduos com produtos biológicos das lojas e do próprio mercado.
Outra ação de melhoria é a colocação de lixeiras para coleta de lixo seco nos corredores e nas praças de alimentação. Obras de adequação das salas de resíduos orgânicos e secos também foram iniciadas em dezembro e devem estar concluídas em breve. O local receberá uma câmara fria específica para lixo orgânico e irá reduzir a circulação de lixo no mercado e definir de forma permanente a questão da armazenagem e manuseio dos resíduos no local.
Depois de um mal-estar provocado pela falta de bicicletário no local, a Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic) instalou quatro bicicletários no Mercado Público. Os suportes, para cinco bicicletas cada, estão localizados nos quatro quadrantes do Mercado, embaixo das escadas. Os equipamentos foram instalados em caráter provisório, até que fique pronto o projeto definitivo, que será localizado no largo Glênio Peres, junto aos deques, e terá capacidade para acomodar 36 bicicletas.
Mas um antigo problema ainda não foi solucionado. O diretor da Associação do Comércio do Mercado Público Central (Ascomepc) Sérgio Lourenço Araújo Rosa, não se cansa de repetir: “falta um estacionamento para o mercado poder crescer ainda mais”. Hoje, o espaço funciona até 18h30min, mas, de acordo com Rosa, com um espaço adequado de garagem, poderia se estender até 22h.
O titular da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio, Valter Nagelstein, reconhece a importância dessa reivindicação antiga. Ele está intermediando a vinda de um grupo espanhol que já construiu estacionamentos embaixo de locais de preservação histórica.

História de superações

Incêndios, enchentes e ameaça de fechamento. Nada disso foi suficiente para derrubar o Mercado Público Central. Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre, o mercado foi inaugurado em 1869 para abrigar o comércio de abastecimento da cidade. Tombado como um bem cultural, está sob responsabilidade da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic).
Entre os habitues de épocas passadas estão grandes nomes, como Lupicínio Rodrigues, Teixeirinha e Mary Terezinha. Outro que deixou saudade é Mario Quintana. A ele é atribuída uma frase sobre a possibilidade de derrubarem o Mercado. Segundo contam, o poeta disse que o Mercado jamais seria demolido. Quando questionado do por que da afirmativa, disse: “porque o Mercado é protegido pelos fantasmas do tempo”. Pelo jeito, esses fantasmas seguem guardando para as próximas gerações o antigo Mercado.

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