O editorial do jornal O Globo de
08 de janeiro de 2010 (6ª) traz o título “Causa e efeito” (na metade de cima,
página 6 da edição impressa), e aborda o tema das vistas grossas de governantes
em função da ocupação de terras urbanas irregulares, nestas se incluindo as
áreas de risco. O argumento não é de todo errado, pois está reclamando da baixa
qualidade da representação política no país e afirmando haver um acordo tácito
– e cínico – entre ocupantes do Executivo e os candidatos que operam nestes
currais favelizados. Mesmo exagerando no conceito de favela fora do triângulo
de Rio-São Paulo – BH (pois em favela o território é parcial ou totalmente
controlado por forças para-legais locais), a existência do dublê de candidato a
vereança ou deputado estadual e que opera como grileiro ou corretor informal é
fato. Estes, segundo o editorialista de confiança da família Marinho, puxam
votos e negociam “suas áreas” de porteira fechada, ou com mais de 2/3 dos votos
de lá (maioria absoluta). A relação cínica seria com a grilagem urbana para
moradia de famílias carentes em áreas verdes ou de risco.
Não há que ser inocente e
qualquer um que tenha se envolvido com luta por moradia sabe da existência de
grilagem para o pessoal de baixo poder aquisitivo. Mas, pela lógica expressa
por um dos poderes midiáticos oficiosos do Brasil, a soma de aliança entre
coronéis urbanos e candidatos fortes ao Executivo é o que permite a existência
e aumento da favelização. Como era de se esperar, nada se relaciona, ao aumento
de moradias irregulares, com a alocação de recursos para projetos de Residência
Popular, mas que é parcialmente bancado pelo Estado – o mesmo que o jornal
acusa de praticar impostos escorchantes, o que é verdade – mas que opera como
caixa do grande capital no Brasil, empreiteiras incluídas. E, todos sabem que a
fúria fiscal é garantia de remuneração do mercado de títulos púbicos, para
rolar a dívida interna e satisfazer o dragão da maldade, ou seja, o sistema
bancário e financeiro.
Enfim, como previsto, o jornalão
inverte o fato e não vê – ou finge ao menos – que o problema é de sim, falta de
bom governo – e também, ausência de planejamento urbano. E, nesse quesito, quem
primeiro quebra toda e qualquer regra é a especulação imobiliária. Porto Alegre
que o diga com o Pontal do Estaleiro, a transformação por eufemismo do Rio
Guaíba em Lago (para construir mais perto de suas margens) e por devaneios nada
inocentes como a Arena do Grêmio e as Torres na Azenha (mais altas, se vierem a
ser construídas, do que o Plano Diretor permite!). Na próxima legislatura
portoalegrense, seria mais sincero que a bancada do cimento cedesse lugar aos
diretores corporativos de empreiteiras, como a Goldsztein e a Cyrela, além da
Maiojama, BM Participações e outras do mesmo porte. Eles próprios, sem laranjas
como as Participações Ltda de sócios ocultos, mas nem tão escondidos assim.
Desta forma, pouparíamos latim xingando a criatura e terminando por poupar seus
co-criadores. Esta desgraça não é exclusividade do Porto dos Casais e nem do
Rio Grande do Eucalipto. Em todo o Brasil a soma da sanha e apetite infindável
do monstro especulador do solo urbano, com o financiamento estatal mediante
transferência de recursos líquidos para incorporadoras, mais a necessidade de
morar próximo ao centro urbano e temos o fenômeno de ausência de dinheiro para
onde precisa pôr muito e o desvio deste para quem já tem de sobra.
As chuvas de início de verão e
a ausência de planejamento em uma sociedade complexa
Muito vem sendo escrito e
comentado a respeito dos temporais de início de verão. Agora choramos pelas
vítimas da pousada na linda Ilha Grande e na cidade de Angra dos Reis. Outrora
lagrimas correram por deslizamentos derivados de lixo nas encostas, enchentes e
destruições. A corrente de opinião majoritária, fora pirotecnias e factóides de
governantes de turno, já entende que a aleatoriedade do clima é um fator e a
irresponsabilidade dos mandatários do Estado é outra. A verdade caminha por
vias tortuosas.
O fato, a perda de vida e
patrimônio decorrente de enchentes e desastres naturais classificáveis como
calamidade pública, de tão “banalizado”, tornou-se corriqueiro. Foi de triste
memória o ato criminoso da queda do edifício Palace II, por vezes caracterizado
como “tragédia”, o crime foi “obra” de deputado dublê de empreiteiro, o já
falecido Sérgio Naya. As famílias que economizaram toda uma vida em busca do
sonho da casa própria mereceram a solidariedade e a cobertura midiática. Mas,
simultaneamente, centenas de outras famílias na mesma cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro, viviam em abrigos públicos ou em casas de parentes em função
de deslizamentos e enchentes. Eram invisíveis até serem tomadas como ponto de
comparação. O poder de pressão das vítimas do Palace II era mais forte do que
os vitimados pelo descaso. Ou seja, no Brasil, não é tão ruim levar um golpe de
um político profissional do que ver-se ao léu do limbo entre a omissão e a
irresponsabilidade.
Neste ano que começa, percebo uma
diferença substantiva. Já não se aceita a versão de que a “culpa é de São
Pedro” ou do El Niño. O problema é de fundo e ultrapassa a instantaneidade do
choque de consciência. No Brasil temos milhões de pessoas vivendo em áreas de
risco, abaixo da linha de pobreza e em péssimas condições sanitárias. Qualquer
estudo sério de saúde pública vai indicar as doenças derivadas da pobreza como
definidoras do quadro geral de qualidade de vida em qualquer sociedade. O mesmo
se dá no que diz respeito ao uso e ordenamento do solo urbano. A ação é o
desrespeito simultâneo. Uma mesma prefeitura que “flexibilizam” planos diretores
e “tranqüiliza” a vereança com discursos de desenvolvimento, e trata as áreas
de ocupação irregulares como locais de concentração de baixa criminalidade e
acumulação de votos de cabresto ou via assistencialismo puro.
Entendo que no Brasil, a expansão
da construção civil e a cobertura do déficit de residências deveriam passar por
dois movimentos simultâneos. Um, era chamado como “mandato Tatu”, quando o
gestor público aplica em saneamento e águas pluviais e não em obras visíveis.
Sem esgotamento sanitário e tratamento de águas para sua re-utilização não há
sustentabilidade alguma. Outro movimento passa pelo aproveitamento de edifícios
já existentes, ocupação de imóveis vazios e o ordenamento urbanos em áreas de
favelas ou irregulares. Enfim, que houvesse um mínimo de racionalidade
econômica dos recursos gerais da nação, reaproveitando o já existente, criando
a estrutura de suporte para aumentar a construção civil e gerando as condições
para o exercício dos direitos básicos de cidadãos favelizados. Como também é o
costume nacional, muito do que afirmo acima já consta no Estatuto das Cidades,
que contempla o espírito da condição humana, eixo da Constituição de 1988. Só
falta avisar aos mandatários de governos e os agentes econômicos do oligopólio
dos materiais de construção (como no cimento) e das empreiteiras.
A criminosa omissão de governo
O ordenamento direto do solo
urbano e dos espaços geográficos de grandes concentrações populacionais em
áreas irregulares é dever do nível de governo municipal. Entra ano e sai ano,
começam e terminam mandatos e o problema central não é abordado. Favela, vila,
mocambo, palafita, baixada e outras denominações regionais para moradia em má
condição não deveria ser paisagem! Ao ser vista como tal, o que é um crime de
Estado – por omissão em décadas consecutivas – torna-se algo “pitoresco”.
Reconheço ser impossível promover
a regularização fundiária das áreas irregulares, com título de posse,
saneamento, abertura de ruas e vias públicas e presença do Estado com o
conjunto de serviços em um período de quatro anos. Mas, o zoneamento, a
localização das áreas de risco e a decisão política de impedir a expansão de
casas onde o ato de construir pode implicar na morte desses moradores, isto sim
é algo possível. E, é perfeitamente possível interromper qualquer tentativa de
“flexibilizar” leis ambientais, em especial naquilo que implicar expandir a
especulação imobiliária com deterioro de áreas verdes.
A contraparte é o absurdo em nome
do progresso de poucos em nome de todos. Não é argumento válido contrapor o
suposto desenvolvimento econômico à “flexibilização” de leis ambientais. A
legislação brasileira de meio ambiente é excelente, e serve com um freio da
especulação imobiliária e ao apetite voraz de obras faraônicas, executadas por
consórcios privados e quase sempre financiadas com o dinheiro do contribuinte
depositado no BNDES ou na Caixa Econômica Federal (e no caso da Província de
São Pedro, no Banrisul). No caso das cidades, a omissão histórica em Angra dos
Reis (para triste exemplo ilustrativo) é a materialização do conceito de que a
atividade-fim da maioria dos governos de turno é permanecer ocupando uma
parcela de poder ou expandindo seu controle sobre orçamentos e cargos. A atividade-meio
é o ato de negociar com as forças sociais, respeitando as relações
assimétricas, atendendo primeiramente aos agentes econômicos em geral e os
investidores de suas próprias candidaturas em particular.
A publicidade de governo cria um
clima de euforia anunciando milhões de metros cúbicos de concreto sendo
erguidos quando deveríamos comemorar canos de esgoto e águas tratadas. O
dinheiro vai para as empreiteiras enquanto o lixo segue para aterro (com pouca
reciclagem) e os coliformes vão para os espelhos d’águas e suas margens. Pela
lógica racional - ou a falta desta em função da cultura de prebendas,
clientelas e patrimonialismo - a planificação das cidades, prevendo sua
expansão, vem primeiro. Crescer a malha urbana implica em metrô, trem de
superfície (urbano e metropolitano) e condições de vida e sustentabilidade do
ar e da água. Isto vem concomitante a idéia-guia que regular o solo urbano
implica em criar redes de esgotos e tratamento de águas.
Aqui se faz o contrário e todo
ano morrem brasileiros em função do descaso e da criminosa omissão de governo.
Até quando?!
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