segunda-feira, 24 de junho de 2013

Entrevista: Só sociedades totalitárias não admitem partidos

Entrevista publicada na edição desta segunda-feira no Jornal do Comercio 

As manifestações populares têm levado milhares de pessoas às ruas do País nos últimos dias. Em Porto Alegre, no ato mais recente havia mais de 20 mil pessoas em marcha e de novo houve confrontos entre a Brigada Militar e os manifestantes. Para o cientista político Paulo Sérgio Peres, os movimentos se tornaram uma onda heterogênea e controversa, que reúne grupos de distintas posições ideológicas, que empunham tanto bandeiras genéricas quando reinvindicações pontuais e resultarão em uma disputa dentro das manifestações.

Em entrevista especial ao Jornal do Comércio, Peres se mostra preocupado com o caráter anti-partidário de grande parte dos manifestantes e um horizonte que pode culminar em regimes totalitários, em nome da pátria. O especialista afirma que a pauta de reivindicações é impossível de ser atendida por partidos de esquerda e direita no curto e longo prazo e projeta a apropriação do discurso das manifestações nas eleições presidenciais de 2014. Peres também afirma queas lideranças dos movimentos que iniciaram as manifestações devem se projetar como lideranças partidárias nos próximos anos.

Jornal do Comércio – Como observa o repúdio de grande parte dos manifestantes em relação à participação político-partidária dentro dos protestos?
Paulo Sérgio Peres – Não é algo inesperado e novo no Brasil ou internacionalmente. Desde os anos 1960, no mundo inteiro vemos pesquisas apontando a crescente queda de identificação partidária, o aumento da desconfiança dos cidadãos de vários países democráticos em relação aos partidos. No caso dos movimentos do Brasil, há um apartidarismo e anti-partidarismo associados de crescente movimento, principalmente dos meios de comunicação, de tentar construir um movimento patriótico, no qual não cabem partidos que são divisores. Isso é preocupante. Somente sociedades totalitárias não admitem partidos, diferenças e grupos com visões divergentes. A rejeição de partidos, com uma história longa de luta e que até começaram todos esses movimentos, vejo como algo preocupante. Sociedades sem partidos e divisões são totalitárias. Na verdade, é impossível uma sociedade sem partido, o que se tem, às vezes, é uma sociedade com partido único. No momento em que, dentro do movimento, há grupos achando que deve ter partidos e grupos achando que não deve ter partidos, no mínimo já tenho dois partidos: os que querem e os que não querem partidos. A democracia precisa de partidos. São movimentos heterogêneos, e os partidos são legítimos e imprescindíveis.

JC – Na abertura política, uma das principais exigências dos movimentos era o pluripartidarismo, após um período de repressão ditatorial.
Peres – Tivemos uma ditadura atípica, que manteve durante boa parte o Congresso Nacional funcionando e realizava eleições – só que controlou o processo com sistema bipartidário forçado. Mesmo dentro do regime havia partidos. Durante o processo de abertura, se viu que a democracia precisava ser um regime amplo e de acolhimento aos partidos mais diversos. Um dos símbolos da democracia é a pluralidade partidária. Se defendemos a diversidade sexual, moral e cultural, por que não aceitar a diversidade partidária? Entendo que a rejeição aos políticos no mundo inteiro acaba resultado na rejeição a organizações políticas, que são os partidos. Mas esperar uma democracia representativa sem os partidos ou é uma ilusão – porque não temos uma instituição que possa substituir os partidos – ou é temerário e autoritário. Porque pressupõe que podemos ter um partido único, que seria da pátria brasileira que não aceita o partido.

JC – Há paralelos entre a trajetória que culminou no regime ditatorial de 1964 e o atual momento político, como este ufanismo e o pedido de que não haja partidarização. É um exagero? 
Peres - Há paralelos. Não é um exagero perceber isso, mas é um exagero achar que já chegamos nesse ponto. Ainda estamos distantes de um ponto de ebulição em que seja possível instaurar um regime autoritário. Mas existem pesquisas que são feitas na América Latina pelo Instituto Latinobarômetro que têm mostrado que, nos últimos anos, os partidos e o Congresso são instituições com baixo prestígio, vistas com desconfiança. As instituições com olhar mais positivo são o Corpo de Bombeiros, a Igreja e as Forças Armadas. Junta isso com outra pergunta, sobre o apoio à democracia de forma incondicional ou se, em alguma circunstância, a população aceitaria um governo autoritário. A maioria das pessoas aceitaria um governo autoritário para resolver situações de conflito. Não chegamos nesse momento, mas se houver instabilidade sem controle, seria uma desculpa perfeita para as Forças Armadas chegarem ao poder. É perigoso o jogo de que os partidos não cabem e que temos que ser apenas patrióticos. Há paralelos históricos, mas não estamos no ponto de ebulição, mas é uma incógnita porque eles ainda estão nas ruas, a cada momento há mudanças e diferenças.

JC – Temos um governo de um partido de esquerda, no Estado e no Brasil, que encampou muitas dessas pautas que estão nas manifestações. A esquerda tem conseguido dar respostas ou ainda está tentando compreender o movimento?
Peres - São duas coisas. Esses movimentos que estão acontecendo não vejo como novos. Não me surpreendi. Quem acompanha os movimentos sabe que havia muitos movimentos na sociedade civil brasileira acontecendo e também havia uma parte da sociedade dormente. Não era um grupo grande da sociedade, mas o movimento estudantil sempre aconteceu, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), os partidos menores que fazem uma série de ações... A verdade é que surgiu uma classe média jovem, não ligada diretamente aos partidos que acabou se agregando a esse movimento. Há uma nova geração que foi formada cultural e intelectualmente nos últimos 15 anos, com uma visão de mundo muito diferente da concepção que prevaleceu e prevalece nos políticos hoje. É uma geração formada no contexto da internet. É uma esfinge não decifrada pelas redes de televisão – que vêm perdendo audiência – nem pelos partidos políticos, nem pelos políticos, que não conseguem renovar quadros partidários, não conseguem ter lideranças novas que venham com essa mentalidade, com esse novo mundo. É uma geração muito diferente e não foi desvendada por políticos e pesquisas. Por outro lado, em que medida os partidos de esquerda estão conseguindo resolver as demandas da população e aquelas promessas que eles tinham? O desafio é que os partidos de esquerda chegaram ao poder, especificamente o PT, e que para governar no sistema político que temos, precisam fazer alianças partidárias com o quadro que vai do centro à direita e tem que abrir mão do quadro programático. O PT enfrentou esse dilema e teve um amadurecimento, percebeu que um partido quando está no poder, está para todos, e não só para aquele nicho político que ele discursava. Isso gera desencantamento. Existe um grupo que sempre apoiou o PT e está desiludido, mas não tem outro partido para escolher. As políticas que são demandadas pelos movimentos, nenhum partido conseguirá dar resposta no curto prazo. É uma agenda tão ampla que é impossível de ser atendida.

JC – Pode haver um esvaziamento das manifestações com a inclusão de pautas genéricas. Há uma disputa de consciência dentro do movimento?
Peres – Esse movimento começa pequeno, de maneira clara e pontual, com o pessoal do Movimento Passe Livre, alguns são membros do P-Sol ou do PSTU. De repente, esse movimento que começa pequeno ganha uma projeção que os líderes não esperavam, e eles se assustaram diante disso. Depois da repressão em São Paulo, houve a adesão de outros grupos, de atores individuais. As próprias lideranças iniciais estão sentindo que abriram uma caixa de Pandora. No sentido de que começaram algo, que já não os pertence, eles não têm mais controle sobre isso. Aquilo que começou como movimento, eu diria que é uma onda. Os próximos passos vão ser as tensões internas que começarão dentro dos manifestantes. Eles vão olhar uns para os outros e perceber que estão lado a lado na rua, mas que defendem muitas coisas diferentes. Há grupos dos movimentos originais que defendem pautas morais mais progressistas, como, por exemplo, a liberação do casamento gay. Do lado dele, há pessoas que são contra a corrupção, mas que são contra as leis favoráveis ao casamento homossexual. Essas pessoas vão olhar umas para as outras e perceber que a única coisa que as une é uma pauta genérica irrealizável no curto prazo. Aquilo que é pontual os afasta. Vejo como um movimento fragmentado, multifacetado, tem gerações variadas, grupos de direita, centro, esquerda e grupos religiosos. É uma onda heterogênea e contraditória. Quem começou não sabe onde vai parar.

JC – A violência é uma forma de resistência? 
Peres – Todo movimento em que as multidões vão para as ruas ascende uma porcentagem de radicalização. Há duas formas de violência. Há a violência que é uma reação, uma quantidade de pessoas que perdem a cabeça, e há a violência de grupos menores, organizados e que fazem uma violência de forma racional – que aproveitam a onda dos movimentos para pôr em prática a sua concepção ideológica de ataque ao Estado ou até propriedade privada. Assim como algumas pessoas que podem ser criminosas que estão aproveitando para saquear. É quase impossível se ter um movimento que não tenha qualquer tipo de incidente de violência. A pauta é muito heterogênea, é possível atrair mais grupos com objetivos diferentes e que podem ser grupos mais radicais em suas manifestações. No caso, está acontecendo de muita gente extravasar uma raiva acumulada, porque se sentia injustiçado, pelas políticas, pelas coisas que tem acontecido no Brasil nos últimos anos, e o movimento acaba sendo um momento de catarse. Vejo como mais preocupante a violência racional de grupos organizados que aproveitam o momento para manifestar a sua ideologia antiestatal, antissistema político, antidemocrática, por meio da violência e da depredação, da quebra de coisas.

JC – Muitos manifestantes tem pintado os rostos em alusão ao movimento dos “caras pintadas”. Quais as relações com os atos do “Fora Collor”, em 1992?
Peres – O movimento “Fora Collor” era uma pauta única, muito clara e factível. O presidente saiu e a pauta foi atendida. Tendo uma pauta clara, foi mais fácil ter uma unidade, uma unificação sem grande heterogeneidade no movimento, assim como estava claro que o movimento acabaria quando a pauta fosse atendida. No momento atual, há um descontentamento, não em relação à presidenta da República, mas a todos os políticos. Por isso que este movimento tem acontecido em várias cidades, administradas por partidos diversos. As manifestações têm atingido tanto prédio de Executivos quanto do Legislativo, é contra os políticos em geral. Alguns paralelos que começam a ser estabelecidos, entre o “Fora Collor” e o que acontece agora, podem ser mais uma tentativa de manipulação desse movimento, como se fosse um movimento contra as políticas do governo federal. E isso não é verdade.

JC – Haverá impacto nas urnas em 2014? Novas lideranças estão emergindo? 
Peres – Acredito que o movimento original tem lideranças. Parou de ter lideranças foi quando o movimento virou uma onda. Portanto, essas lideranças vão se transformar em lideranças políticas, partidárias. Isso aconteceu inclusive no movimento do “Fora Collor”, em que o Luiz Lindbergh Farias (hoje senador PT-RJ) foi uma das principais lideranças nacionais estudantis. Em relação às eleições do ano que vem, os partidos vão tentar se apropriar do discurso, como sempre fazem, e vão colocar isso nas suas campanhas, cada um vai querer dizer que o movimento era contra o governo federal, contra o governo estadual ou era contra o governo municipal, que é de partido X ou Y. Do ponto de vista prático, nada vai mudar.

JC - Por quê?
Peres - Primeiro, ainda são os mesmos políticos que estão aí. Não temos nenhuma grande liderança jovem de fato. As lideranças políticas são ainda aquelas do regime autoritário. Segundo, o sistema político é o mesmo, que não vejo como tão problemático assim, como muita gente aponta. O sistema político é estabelecido de tal modo que os legislativos são ocupadas por muitos partidos e o chefe dos Executivos para governar precisa da maioria no Legislativo. Não vejo no horizonte de médio e longo prazo uma mudança tão drástica.

Perfil
Paulo Sérgio Peres tem 44 anos. É natural de São Paulo e atua como professor adjunto no departamento de graduação e pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos, possui mestrado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em Ciência Política pela mesma instituição, onde defendeu uma tese sobre o sistema partidário brasileiro, na qual realizou uma análise do período de 1982 a 2004. Foi professor substituto na Universidade Federal de São Carlos e professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo. Sem filiação partidária, Paulo Sérgio Peres atua principalmente com os temas de instituições políticas brasileiras, partidos e sistemas partidários, teoria democrática e história. O professor possui ainda diversos artigos publicados em congressos e livros especializados em Ciência Política.

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